
CATEGORIA ESTUDANTE DE ENSINO MÉDIO
Professora Orientadora: Catarina Tavares Vieira Jamacaru
Mãe Tonha olhou para os lados. Até certo ponto triste. Triste sim. Apesar
de tudo Zé Sampaio fora sua vida, casara com ele ainda menina, adolescente,
pobre pastora de cabras do interior da Bahia. Agora ele estava morto, o corpo
bruto e velho estendido no caixão pesado no meio da sala. Os olhos fechados,
o rosto contorcido quase numa careta. Nem na morte sossegaria o velho Zé.
Casara a força é verdade, mas ainda assim ele fora a sua vida – não tivera outra
oportunidade depois de tê-lo conhecido. Ah, dia amaldiçoado.
No dia mãe Tonha contava então com 17 anos. Sua mãe estava na
cozinha lavando uma panela suja do almoço. Comida simples, como o povo do
interior, mera mistura de baião de fava e ovo frito. A menina na sala escrevia em
uma folha de papel amassada, usava um pedaço de lápis sem ponta definida,
mordido em alguns lugares. Era tudo que restara do tempo em que estudava no
grupo escolar – largado a mando do pai aos 12 anos.
Lugar de mulher, ainda mais menina nova, é em casa, ajudando a
família, lavando, passando e cozinhando pro homem. Sempre foi assim e sempre
seria. Mãe Tonha escutou essas palavras e largou o grupo. O pai não deixava.
Mas naquela tarde, hora da sesta no interior, ela escrevia o nome na
folha de papel.
A mãe apareceu na sala e tomou-lhe a folha das mãos, os olhos de
mãe Tonha se encheram de lágrimas. A folha pobre foi rasgada, as palavras se
perderam no chão de barro, as lágrimas se fundiram a elas em seguida.
– Vai trabalhar que me ajuda mais! Fica perdendo tempo estudando,
não precisa disso, teu pai já disse! Vai procurar a cabra Maria que se
perdeu ontem no tabuleiro que faz melhor! Anda, vai!
Mãe Tonha foi, mas no lugar da cabra achou Zé Sampaio. Caboclo do
interior, 40 anos gastos no cuidado das cabras, dono de rebanhos e terras pra
plantar. Vinha com o cão no corpo naquele dia, a menina que ele quisera pagar
na noite anterior no palácio não estivera lá. Diabo de rapariga!
A menina, pequena mãe Tonha, vinha com a cabeça baixa. Zé Sampaio
viu pernas e peito de mulher, o corpo ainda crescendo. Quando passou por
ela viu-lhe as ancas despontando. Só precisou ver isso. Correu-lhe atrás e a
derrubou no mato. Tirou o cabaço ali mesmo, em meio ao barro seco na terra
e a vegetação rasteira. Raízes e espinhos, talo a arranhar seu corpo e tirar-lhe
sangue.
Abuso sexual. Termo desconhecido no interior da Bahia. Poder e
dinheiro, palavras bem conhecidas a justificar meio mundo, inclusive honra de
menina perdida no meio do mato à hora da sesta.
Mãe Tonha engravidou. A mãe chorou quando percebeu. Chorou outra
vez enquanto o pai dava uma surra na meninota, agora grávida. Era assim que
deveria ser, sempre foi. Menina perdida no mundo merecia surra, com ou sem
bucho. Não havia meio termo no interior da Bahia, onde condição de mulher é
em casa cuidando do marido, e agora do filho se este sobrevivesse à surra.
Mas ela não reclamou, não podia. Era mulher, afinal de contas, e mulher
não reclama. É como um objeto útil na casa, a carne no almoço de domingo. Ela
apanhou calada.
Semanas depois trocaria a escravidão do velho pai pela de Zé Sampaio.
Afinal o caboclo gostara da meninota e resolveu adotar aquele filho que crescia na
barriga dela, legitimá-lo como sendo seu. Antes não tivesse casado, a escravidão
teria acabado anos depois com a morte do pai. Com Zé, durou décadas.
Mãe Tonha passou os olhos ao redor da sala, os filhos e netos dando
atenção ao morto, servindo café e cachaça, vatapá e salgadinhos. Velório para ser
bom tem que ter boa comida, dar forças aos que rezam pela salvação da alma do
falecido. No caso de Zé seria preciso toda uma novena para salvá-lo. É assim no
interior, onde a morte se celebra como a vida, com comida e festa.
Olhou a mão pequena e calejada com atenção. Os trabalhos no campo
deformaram a pele, os de casa deformaram a força de vontade. Apanhar só
às vezes, quando Zé Sampaio bebia demais, batia-lhe apenas pelo prazer de
maltratar, vê-la em prantos. Mas mãe Tonha se constituía de mulher e esposa
dedicada, não lhe cabia reclamar de nada. Marido tinha seus direitos.
A dor das pancadas não doía na alma, apenas na carne, corpo pecador,
Cristo sofreu mais na cruz. Alma de mulher do sertão já acostumou com o mal
passar, o mal amar. Pelo menos não acontecera nada de pior. A prima Maria das
Dores, moradora da baixa do tabuleiro, teve a língua cortada pelo marido por lhe
faltar ao respeito na frente dos sogros. Poderia ser pior.
Lembrou-se das poucas vezes onde tinha atenção deveras, os momentos
onde humilhação e orgulho se misturavam. Humilhação dela, orgulho dele. Zé
Sampaio contava algum caso repetido de rapariga à esposa depois, questão
de feitos de cama, honra de homem. Virava para ela e perguntava com a voz a
ordenar:
– É ou não? Diga Tonha se não foi verdade o caso!
Mãe Tonha concordava, cabeça baixa, afirmativa e submissa. Ele a
puxava para si e apertava seus ombros com força, afirmando sua posse.
– Tonha não tem do que reclamar. Tão bem servida de cama. O bode é
velho, mas vale por muito cabrito novo.
Apertava outra vez os ombros da mulher. Era sua. E apenas isso. Como
o gado e as cabras no pasto. Os animais tendo a serventia de render dinheiro.
Papel de mulher era servir e cuidar, com ou sem violência decidia o marido.
O enterro corria animado. A filha mais velha chegou-se perto da mãe,
no rosto a tristeza necessária ao luto, no fundo dos olhos uma alegria contida,
alegria pela liberdade agora conseguida com a morte do velho. Os olhos varreram
o rosto da menina e bem abaixo do lábio. Estava lá. A cicatriz da antiga surra dada
por Zé Sampaio. Ruim com a mulher, pior com as filhas, pensava mãe Tonha.
Foi no tempo que houve festa junina. Zé Sampaio não queria filha sua
misturada no povo e não a quis na festa. Mulher era para ficar em casa. Mas
a personalidade de mãe Tonha não passou de herança à filha, que era rebelde
como o pai, voluntariosa e teimosa. Foi à festa. Voltou para casa algumas horas
depois sob chuva de xingos e gritos do velho criador. Chuva pesada demais para
noite de festa.
Apanhou até o velho não mais conseguir erguer o braço de cansaço.
Danos foram muitos, um braço quebrado, o corpo roxo, abaixo do lábio um corte
de três dedos que viraria pesada cicatriz. Mãe Tonha assistiu calada. Não cabia
a ela consolar as lágrimas da filha, cuidar dos machucados ou consolar a alma
ferida. Se interviesse a próxima surra seria nela.
A alma rude, a mulher-objeto do sertão ainda sentiu a dor como se fosse
à própria carne. Chorou pela filha que não pôde cuidar.
Agora a mesma filha lhe sorria com os olhos, não culpava mãe Tonha por
surra alguma. Zé Sampaio era pior com ela. Levantou-se e foi servir um gole de
cachaça ao marido. Homem bom o Menezes, genro de mãe Tonha, diferente do
falecido. Tratava a esposa à base de ouro e boa cama, só lhe exigindo a obediência
em troca. Posse de luxo pelo menos. Escravidão paga com boa recompensa. Pelo
menos era paga.
Mas não era hora de relembrar o passado, era no fundo um dia de festa.
Zé Sampaio morrera e no sertão se comemora a morte como a vida. Mãe Tonha
estava enfim livre. As economias do velho guardadas dentro do pote de biscoito.
Ah, pobre mãe Tonha. Sem direito a dor ou alegria, sem direito a se rir
ou a se chorar. Estava livre agora como nunca fora na vida, para ir à rua com as
beatas da igreja, para comprar a comida que quisesse comer, para ter o direito
ao sono tranquilo e a não mais apanhar. Mas o dia de festa estava marcado pelo
peito vazio. Era mulher nascida e educada no interior e todos sempre lhe diziam
que para ser feliz é preciso macho na cama, ao lado para deitar, dar carinho ou
bater. Ele quem decide. Para se viver era preciso homem com ela, a mandar ou
desmandar. Era a sorte da mulher, principalmente mulher do sertão da Bahia.
Não havia dor ou alegria em seu peito.
Ah, pobre mãe Tonha. Não se ria e não chorava, simplesmente existia.
Um não mais viver, um não mais doer. É assim com mulher de sertão, a mulher-
objeto, onde só se é feliz com marido, seja ele bom ou não.
Mãe Tonha vive agora, vive sem viver, vive sem saber. A pensar no tempo
que vivia com Zé. Como a mulher do Sertão Baiano, onde ensinam que vida é
viver com homem e só.
E só.
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Um comentário:
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