terça-feira, 13 de setembro de 2011

7º CONCURSO DE REDAÇÕES, ARTIGOS CIENTÍFICOS E PROJETOS PEDAGÓGICOS


CATEGORIA ESTUDANTE DE ENSINO MÉDIO
REDAÇÃO PREMIADA - 2010
Ceará – Crato
Crônicas de mãe Tonha
Danielle Bezerra Feitosa
Colégio Pequeno Príncipe
Professora Orientadora: Catarina Tavares Vieira Jamacaru



Mãe Tonha olhou para os lados. Até certo ponto triste. Triste sim. Apesar

de tudo Zé Sampaio fora sua vida, casara com ele ainda menina, adolescente,

pobre pastora de cabras do interior da Bahia. Agora ele estava morto, o corpo

bruto e velho estendido no caixão pesado no meio da sala. Os olhos fechados,

o rosto contorcido quase numa careta. Nem na morte sossegaria o velho Zé.

Casara a força é verdade, mas ainda assim ele fora a sua vida – não tivera outra

oportunidade depois de tê-lo conhecido. Ah, dia amaldiçoado.

No dia mãe Tonha contava então com 17 anos. Sua mãe estava na

cozinha lavando uma panela suja do almoço. Comida simples, como o povo do

interior, mera mistura de baião de fava e ovo frito. A menina na sala escrevia em

uma folha de papel amassada, usava um pedaço de lápis sem ponta definida,

mordido em alguns lugares. Era tudo que restara do tempo em que estudava no

grupo escolar – largado a mando do pai aos 12 anos.

Lugar de mulher, ainda mais menina nova, é em casa, ajudando a

família, lavando, passando e cozinhando pro homem. Sempre foi assim e sempre

seria. Mãe Tonha escutou essas palavras e largou o grupo. O pai não deixava.

Mas naquela tarde, hora da sesta no interior, ela escrevia o nome na

folha de papel.

A mãe apareceu na sala e tomou-lhe a folha das mãos, os olhos de

mãe Tonha se encheram de lágrimas. A folha pobre foi rasgada, as palavras se

perderam no chão de barro, as lágrimas se fundiram a elas em seguida.

– Vai trabalhar que me ajuda mais! Fica perdendo tempo estudando,

não precisa disso, teu pai já disse! Vai procurar a cabra Maria que se

perdeu ontem no tabuleiro que faz melhor! Anda, vai!

Mãe Tonha foi, mas no lugar da cabra achou Zé Sampaio. Caboclo do

interior, 40 anos gastos no cuidado das cabras, dono de rebanhos e terras pra

plantar. Vinha com o cão no corpo naquele dia, a menina que ele quisera pagar

na noite anterior no palácio não estivera lá. Diabo de rapariga!

A menina, pequena mãe Tonha, vinha com a cabeça baixa. Zé Sampaio

viu pernas e peito de mulher, o corpo ainda crescendo. Quando passou por

ela viu-lhe as ancas despontando. Só precisou ver isso. Correu-lhe atrás e a

derrubou no mato. Tirou o cabaço ali mesmo, em meio ao barro seco na terra

e a vegetação rasteira. Raízes e espinhos, talo a arranhar seu corpo e tirar-lhe

sangue.

Abuso sexual. Termo desconhecido no interior da Bahia. Poder e

dinheiro, palavras bem conhecidas a justificar meio mundo, inclusive honra de

menina perdida no meio do mato à hora da sesta.

Mãe Tonha engravidou. A mãe chorou quando percebeu. Chorou outra

vez enquanto o pai dava uma surra na meninota, agora grávida. Era assim que

deveria ser, sempre foi. Menina perdida no mundo merecia surra, com ou sem

bucho. Não havia meio termo no interior da Bahia, onde condição de mulher é

em casa cuidando do marido, e agora do filho se este sobrevivesse à surra.

Mas ela não reclamou, não podia. Era mulher, afinal de contas, e mulher

não reclama. É como um objeto útil na casa, a carne no almoço de domingo. Ela

apanhou calada.

Semanas depois trocaria a escravidão do velho pai pela de Zé Sampaio.

Afinal o caboclo gostara da meninota e resolveu adotar aquele filho que crescia na

barriga dela, legitimá-lo como sendo seu. Antes não tivesse casado, a escravidão

teria acabado anos depois com a morte do pai. Com Zé, durou décadas.

Mãe Tonha passou os olhos ao redor da sala, os filhos e netos dando

atenção ao morto, servindo café e cachaça, vatapá e salgadinhos. Velório para ser

bom tem que ter boa comida, dar forças aos que rezam pela salvação da alma do

falecido. No caso de Zé seria preciso toda uma novena para salvá-lo. É assim no

interior, onde a morte se celebra como a vida, com comida e festa.

Olhou a mão pequena e calejada com atenção. Os trabalhos no campo

deformaram a pele, os de casa deformaram a força de vontade. Apanhar só

às vezes, quando Zé Sampaio bebia demais, batia-lhe apenas pelo prazer de

maltratar, vê-la em prantos. Mas mãe Tonha se constituía de mulher e esposa

dedicada, não lhe cabia reclamar de nada. Marido tinha seus direitos.

A dor das pancadas não doía na alma, apenas na carne, corpo pecador,

Cristo sofreu mais na cruz. Alma de mulher do sertão já acostumou com o mal

passar, o mal amar. Pelo menos não acontecera nada de pior. A prima Maria das

Dores, moradora da baixa do tabuleiro, teve a língua cortada pelo marido por lhe

faltar ao respeito na frente dos sogros. Poderia ser pior.

Lembrou-se das poucas vezes onde tinha atenção deveras, os momentos

onde humilhação e orgulho se misturavam. Humilhação dela, orgulho dele. Zé

Sampaio contava algum caso repetido de rapariga à esposa depois, questão

de feitos de cama, honra de homem. Virava para ela e perguntava com a voz a

ordenar:

– É ou não? Diga Tonha se não foi verdade o caso!

Mãe Tonha concordava, cabeça baixa, afirmativa e submissa. Ele a

puxava para si e apertava seus ombros com força, afirmando sua posse.

– Tonha não tem do que reclamar. Tão bem servida de cama. O bode é

velho, mas vale por muito cabrito novo.

Apertava outra vez os ombros da mulher. Era sua. E apenas isso. Como

o gado e as cabras no pasto. Os animais tendo a serventia de render dinheiro.

Papel de mulher era servir e cuidar, com ou sem violência decidia o marido.

O enterro corria animado. A filha mais velha chegou-se perto da mãe,

no rosto a tristeza necessária ao luto, no fundo dos olhos uma alegria contida,

alegria pela liberdade agora conseguida com a morte do velho. Os olhos varreram

o rosto da menina e bem abaixo do lábio. Estava lá. A cicatriz da antiga surra dada

por Zé Sampaio. Ruim com a mulher, pior com as filhas, pensava mãe Tonha.

Foi no tempo que houve festa junina. Zé Sampaio não queria filha sua

misturada no povo e não a quis na festa. Mulher era para ficar em casa. Mas

a personalidade de mãe Tonha não passou de herança à filha, que era rebelde

como o pai, voluntariosa e teimosa. Foi à festa. Voltou para casa algumas horas

depois sob chuva de xingos e gritos do velho criador. Chuva pesada demais para

noite de festa.

Apanhou até o velho não mais conseguir erguer o braço de cansaço.

Danos foram muitos, um braço quebrado, o corpo roxo, abaixo do lábio um corte

de três dedos que viraria pesada cicatriz. Mãe Tonha assistiu calada. Não cabia

a ela consolar as lágrimas da filha, cuidar dos machucados ou consolar a alma

ferida. Se interviesse a próxima surra seria nela.

A alma rude, a mulher-objeto do sertão ainda sentiu a dor como se fosse

à própria carne. Chorou pela filha que não pôde cuidar.

Agora a mesma filha lhe sorria com os olhos, não culpava mãe Tonha por

surra alguma. Zé Sampaio era pior com ela. Levantou-se e foi servir um gole de

cachaça ao marido. Homem bom o Menezes, genro de mãe Tonha, diferente do

falecido. Tratava a esposa à base de ouro e boa cama, só lhe exigindo a obediência

em troca. Posse de luxo pelo menos. Escravidão paga com boa recompensa. Pelo

menos era paga.

Mas não era hora de relembrar o passado, era no fundo um dia de festa.

Zé Sampaio morrera e no sertão se comemora a morte como a vida. Mãe Tonha

estava enfim livre. As economias do velho guardadas dentro do pote de biscoito.

Ah, pobre mãe Tonha. Sem direito a dor ou alegria, sem direito a se rir

ou a se chorar. Estava livre agora como nunca fora na vida, para ir à rua com as

beatas da igreja, para comprar a comida que quisesse comer, para ter o direito

ao sono tranquilo e a não mais apanhar. Mas o dia de festa estava marcado pelo

peito vazio. Era mulher nascida e educada no interior e todos sempre lhe diziam

que para ser feliz é preciso macho na cama, ao lado para deitar, dar carinho ou

bater. Ele quem decide. Para se viver era preciso homem com ela, a mandar ou

desmandar. Era a sorte da mulher, principalmente mulher do sertão da Bahia.

Não havia dor ou alegria em seu peito.

Ah, pobre mãe Tonha. Não se ria e não chorava, simplesmente existia.

Um não mais viver, um não mais doer. É assim com mulher de sertão, a mulher-

objeto, onde só se é feliz com marido, seja ele bom ou não.

Mãe Tonha vive agora, vive sem viver, vive sem saber. A pensar no tempo

que vivia com Zé. Como a mulher do Sertão Baiano, onde ensinam que vida é

viver com homem e só.

E só.



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Um comentário:

Rosinilva Maciel disse...

Vale a pena conferir o site. Lá encontrei belas histórias. Clique.